Banguecoque: o ponto de partida de uma viagem de nove meses
Partir numa viagem sem data de regresso pode parecer assustador. Por outro lado, é uma experiência única de autoconhecimento. Patrícia Carvalho, autora do projeto Girl from Nowhere, embarcou em 2018 numa viagem de nove meses. O objetivo era deixar a Bioquímica de parte e conhecer a região do Sudeste Asiático. Sem um plano detalhado, a Tailândia foi o seu ponto de partida.
Patrícia com crianças tailandesas.
Como é que te começaste a interessar pelo mundo das viagens?
O meu interesse surgiu algures em 2011, nos meus 17 anos, quando li o livro do Gonçalo Cadilhe, “O mundo é fácil”. Até então desconhecia completamente o conceito de viagem longa, de mochila às costas, com um budget reduzido. Para mim viajar era no máximo, ir 3 ou 4 dias a Paris. Este livro abriu as portas de um mundo novo que, mal sabia eu, haveria de mudar a minha vida. Desde então comecei a consumir compulsivamente conteúdo de viagens, na altura na forma de blogs e livros, até concretizar o sonho de fazer a minha própria viagem.
Há três anos iniciaste uma das maiores aventuras da tua vida. Como surgiu a ideia de embarcar nesta viagem?
A ideia foi surgindo naturalmente. Não houve um dia ou um momento específico em que tivesse decidido fazê-la. Quando voltei da minha primeira viagem sozinha, à Tailândia, trazia o desejo de um dia me atirar para uma viagem à maluca. Sem planos, nem prazos. E desde aí que fui “aquecendo” a ideia. Depois comecei o mestrado, continuei os estudos, e assim que a vida se alinhou nesse sentido, não pensei duas vezes e tirei esse sonho da gaveta. O momento ideal surgiu depois de ter concluído o mestrado, numa altura em que precisava de descansar e de me afastar um pouco do mundo do trabalho. Posto isto, o meu planeamento passou apenas por comprar um voo, fazer a consulta do viajante e comprar um seguro de viagem. Comecei a tratar destas burocracias com um mês e meio de antecedência.
Em Laos, a jovem deu aulas a um grupo no qual estava um fã do Cristiano Ronaldo.
O que tinhas a certeza de que querias fazer?
Tinha a certeza de que queria ir à Tailândia, Laos, Camboja, Vietname, Malásia e Singapura. Os outros países, Indonésia, Myanmar e Nepal, foram surgindo durante a viagem. Sabia também que queria fazer voluntariado, em qualquer coisa que fizesse sentido para mim, e queria ter a experiência de viver numa comunidade autossustentável.
Monumento no Vietname em memória das vítimas da guerra.
Como é que se planeia uma viagem tão longa? Com que grau de detalhe?
Pode parecer contraditório, mas acho que quanto maior é a viagem, menor o grau de detalhe necessário para o planeamento. Isto porque se a viagem for longa, de vários meses, temos tempo ao longo da viagem para ir planeando os dias seguintes. Não faz sentido sair de Portugal com um roteiro de 200 dias porque vai correr mal de certeza. Além disso, não há nada como chegar ao próprio destino e ver como é que as coisas funcionam, como é que as pessoas de lá fazem, e depois as coisas acontecem naturalmente. Sei que a ideia de partir sem um plano sólido pode ser assustadora, mas ao mesmo tempo também pode ser libertadora. Ao fim ao cabo, torna-se muito fácil do que o que parece.
Tailândia era uma das tuas principais certezas. Como surgiu o teu interesse por este país?
Não sei bem. No livro do Gonçalo Cadilhe, o “O mundo é fácil”, o autor menciona a Tailândia como um dos destinos mais baratos e mais seguros para mulheres que viajavam sozinhas. Ora acho que estes dois fatores, o baixo custo e a segurança, fizeram match na minha mente. Desde essa altura que sempre tive o sonho de ir à Tailândia.
Uma das experiências gastronómicas que incluia uma larva, no menu.
Qual era o teu principal receio antes de partires?
O meu principal receio era não aguentar muito tempo longe de casa. Eu sabia que queria fazer uma viagem longa, mas optei por não fixar um prazo. Por medo de não o conseguir cumprir. Dentro de mim queria viajar pelo menos uns seis meses, mas tinha medo de, depois de dois ou três meses, me estar a sentir sozinha e com vontade de regressar. Nada disto aconteceu, acabei por ficar quase nove e a última coisa que senti foram saudades.
Que sentimentos recordas da viagem a Banguecoque?
Eu já estive em Banguecoque várias vezes ao longo da minha vida. Foi lá que comecei e terminei a minha primeira viagem sozinha, em 2015, e foi lá que comecei esta minha grande viagem, em 2018. Para mim é uma cidade especial porque é onde normalmente começam e terminam as minhas viagens. Em 2015, senti um choque cultural muito grande. Foi a primeira vez que estava fora da Europa. Banguecoque é uma cidade enorme, completamente diferente daquilo a que eu estava habituada. Nos primeiros dias tudo me fez muita confusão, desde os cheiros, às longas distâncias, ao calor. Depois, na segunda viagem, a sensação foi completamente diferente. Foi a de regressar a um lugar que me abriu as portas para um mundo novo.
As ruas de Banguecoque são caracterízadas pelo cheiro a street food.
Que cheiro e que som é que te fazem lembrar esta cidade?
O cheiro é sem dúvida uma mistura entre cheiro a frito com lixo. Em toda a Ásia há muito a tradição da street food (comida de rua) e por isso, nas esquinas há sempre alguém a cozinhar qualquer coisa. Depois o cheiro a lixo vem do facto de ser uma cidade enorme, cujo sistema de lixo e saneamento ainda não está no seu melhor. O som é do trânsito. É quase impossível andar de carro porque o trânsito é tanto que até uma distância relativamente curta pode demorar uma hora ou mais a ser feita. O trânsito é muito caótico e o barulho pode ser ensurdecedor para quem não está habituado a cidades grandes.
O que não pode faltar numa viagem a Banguecoque?
Uma visita ao templo Wat Arun, um dos mais bonitos que já vi. Mas tem de ser ao final do dia, quando os raios de sol batem horizontalmente no templo, o que lhe confere uma tonalidade espectacular. Depois da visita ao templo, sugiro uma viagem de barco até à outra margem do rio, onde há vários bares/rooftops, de onde podem ver o Wat Arun iluminado, já de noite.
Que episódio é que te marcou, especialmente, nesta cidade?
Na primeira vez que estive na Tailândia passei por alguns momentos engraçados. Lembro-me de que, num dos primeiros dias, tentei comprar dois tours para visitar um mercado flutuante e a cidade de Ayutthaya. Encontrei uma espécie de agência turística e comecei a falar com o senhor que lá estava. No final, quando lhe disse que queria marcar os tais tours, ele disse-me para ir com ele. Quando dei por mim estava sentada na mota, com ele a conduzir, supostamente em direção ao escritório do chefe. Fiz aquilo muito naturalmente e só quando ele já estava a conduzir é que me caiu a ficha e reparei que estava com uma pessoa totalmente desconhecida, num país com uma cultura completamente diferente, e que poderia até estar a pôr a minha vida em risco. No momento seguinte senti uma adrenalina enorme pelo corpo todo. Depois correu tudo bem, marquei os tours e o senhor trouxe-me de volta ao sítio onde estava. Este foi um momento importante porque foi a primeira vez em que confiei em alguém em viagem. E foi apenas o primeiro de muitos outros episódios que se seguiram e que me ajudaram a desconstruir esta ideia de que o mundo é um lugar perigoso.
A primeira vez que Patrícia experimentou deslocar-se numa scotter.
O que é que Banguecoque tem de único?
Eu não acho que seja uma cidade bonita nem encantadora. Na verdade, a maior parte das pessoas não gosta dela por ser tão grande e suja. Eu compreendo, porque têm razão. Porém, aquilo que me atrai é esta confusão. Se no início tive receio e não estava preparada, rapidamente me integrei na dinâmica daquela cidade e fiquei completamente absorvida. Tudo é muito intenso em Banguecoque - o calor é abrasador, os cheiros conseguem ser nauseabundos, o trânsito caótico, a quantidade de pessoas nas ruas pode também ser desconfortável. Mas, para mim, toda esta confusão e intensidade são muito sedutoras. Há algo que me atrai nesta barafunda. Acho que também é por isso que gosto particularmente da Ásia.
Lembraste de alguma curiosidade ou tradição que só soubeste no momento da tua viagem?
Sim, várias. Uma das primeiras foi a impureza dos pés por eles considerada. Por este motivo é que é obrigatório tirar os sapatos sempre que se entra num templo, ou na casa de alguém. Da mesma forma, a cabeça é considerada sagrada e por isso é muito mal visto tocar na cabeça de alguém, inclusive de crianças ou bebés, algo que aqui fazemos com naturalidade.
Pai, Tailândia.
Como é que descreves a vida em Banguecoque?
Acho que pode parecer confusa para nós, que estamos habituados a múltiplas regras e sistemas organizacionais, mas acredito que para eles seja uma vida normal. Apesar de tudo, as coisas lá funcionam, tal como funcionam aqui, mas de uma forma diferente, mais desorganizada. Mas o resultado está lá. E acho que no fundo as pessoas, no seu dia-a-dia, têm as mesmas preocupações que nós.
O que é fundamental saber para quem pretende conhecer Banguecoque?
Que não vale a pena chamar um táxi, porque vão perder imenso tempo. Um truque que aprendi foi utilizar moto táxis, a partir de uma aplicação similar ao Uber chamada Grab. Como são motos, atravessam as filas de trânsito muito mais facilmente e poupam muito tempo. Além disso são mais baratas. Outro aspeto fundamental é evitar comprar tours para visitar mercados flutuantes ou outro tipo de mercados. Estes mercados já foram completamente tomados pelo turismo e tudo aquilo que vão ver é artificial e está feito para o turismo. Só vão encontrar souvenirs e coisas do género à venda, por preços estapafúrdios.
Bali, Indonésia.
Como é que percebeste que estava na altura de regressar, após vários meses na Ásia?
Senti que era altura de regressar quando comecei a perder algum interesse em conhecer novos sítios. Quando chegava a algum lugar e já não tinha muita vontade em visitar mais um templo ou fazer mais um trekking até uma cascata. Ao mesmo tempo, já tinha muitas ideias para pôr em prática quando chegasse a Portugal. E por isso achei que já havia indícios suficientes de que deveria regressar.
Como é que a tua experiência em viagem te ajudou a ter um maior controlo sobre a tua mente?
Sem dúvida que pelo autoconhecimento. Viajar coloca-me em situações atípicas, que dificilmente viveria se não tivesse saído da minha bola. E essa panóplia de experiências faz com que eu me conheça melhor. E acho que a minha viagem longa exigiu isso de mim. Eu era a minha única companhia e tive de aprender a conhecer-me muito bem e a ser uma boa companhia de mim própria. Hoje em dia é muito difícil eu ter um problema cuja razão não consigo explicar.
Angkor Wat, Camboja.
Que conselho darias a alguém que quisesse aventurar-se num projeto semelhante ao teu?
Para simplesmente começar a fazer. Sinto que muitas vezes o pessoal não começa um projeto porque já está a pensar no trabalho que vai dar e nas responsabilidades que vai ter. Estes pensamentos acabam por bloquear a ação, e a ideia acaba por morrer. Acho que tudo se faz, ao seu ritmo e no seu tempo, é preciso ter proatividade e começar por algum lado. Seja a escrever artigos, a fazer um logótipo, a tirar cursos gratuitos no Instagram. O importante é tirar a ideia do papel e testar.
Que locais desejas conhecer?
Não tenho nenhum destino de sonho, em específico. Acho que a minha viagem de sonho já realizei. Claro que tenho muitos países que quero conhecer, mas sem aquela magia do destino de sonho. No futuro gostava de ir à China, à Índia, ao Japão e ao Médio Oriente. O meu coração continua a bater forte pela Ásia.
Em 2019, após regressar da viagem, Patrícia Carvalho publicou o livro “Solo” no qual retrata os nove meses que viveu na Ásia. Recenetemente foi publicada a segunda edicação, que visa fincanciar parte dos próximos projetos da autora. Todas as informações, bem como todas as fotografias publicadas neste artigo, estão disponíveis na página de Instagram @girl.from.nowhere
Catarina Silva